terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Padeiros de aldeia

Depositários de saberes tradicionais

Apesar das deslocações dos habitantes de Travancas a Chaves serem diárias, há relações sociais, como as que são estabelecidas com padeiros, vendedores de hortaliças, frutas, carne e peixe congelados, que fazem lembrar o tempo em que almocreves, quais mensageiros, traziam e levavam boas e más novas, a estas montanhosas aldeias raianas.



Hoje, porém, vou falar dos padeiros. Em Travancas, os dois maiores consumidores de pão são o Lar do Senhor dos Aflitos e o Café Central, abastecido, entre outras, pelo padaria de São Pedro Velho, concelho de Mirandela.




Além da padaria da Terra Quente, aparecem na aldeia, em dias alternados, os padeiros de Tronco, São Vicente e Faiões. A Argemil vai ainda o padeiro de Lebução, concelho de Valpaços.







Ao longo do ano, exceptuando numa ou noutra ocasião, como a Páscoa e a festa do santo padroeiro, quase ninguém coze pão em casa, apesar de haver famílias com forno próprio.




Mas antigamente não era assim. A dona Cila, natural de Argemil, ainda se recorda que quando casou em Travancas, terra do marido, lhe foi aconselhado que não fizesse como as mulheres da aldeia que, antecipando-se às de Argemil, tinham deixado de cozer pão, comprando-o à padeira de Mairos.



Nos anos sessenta do século XX, ainda se cozia no forno do povo, marcando-se a vez com um guiço, colocado à entrada do forno.  Cozia-se para duas ou mais semanas, sem que o pão ganhasse bolor.




Era também o tempo em que havia moínhos, onde se fazia a moagem do  centeio, milho e trigo; em que os taleigos do grão e da farinha eram transportados em burros e os moleiros ficavam com a maquia. A farinha moída nas mós das azenhas servia para as filhós no Natal e para o bom pão das alheiras. Feito com farinha fina, o pão era melhor que o de hoje. Nem tinha comparação, diz a dona Cila.



No rio, entre Argemil e São Vicente, havia dois moleiros, o senhor Franquelim e o Ti Zé moleiro que lá viviam com as respectivas famílias. Em Argemil, faziam moagem no moinho do rigueiro da Langeira, o senhor Emiliano e o Ti Abílio, irmãos. A este sucederam os filhos Clemente e Sebastião. 




Faça o tempo que fizer, a distribuição do pão está garantida. O toque da buzina anuncia a chegada do padeiro, à hora mais ou menos esperada. O padeiro conhece os hábitos de consumo dos clientes e pára à porta. Estes, por seu lado, caso não estejam, deixam pendurado um saco com a quantia necessária para o pagamento. Numa relação personalizada, baseada na confiança mútua, o diálogo deixa de ser circunstâncial, abarcando a troca de opiniões sobre assuntos da atualidade.




As padarias de aldeia, como esta de São Vicente da Raia, possuem modernas instalções e fornos a lenha, onde se coze o saboroso pão caseiro que  sacia o  nosso apetite.




Os padeiros de aldeia não se limitam a fazer todo o tipo de pão de centeio, trigo, milho ou de mistura...





Numa estratégia de sobrevivência, fazem, por encomenda, bolos de aniversário e sortidos. Assam cabritos, cordeiros e leitões...



A quem não provou um folar, com carne fumada, pelo método tradicional, aos padeiros de aldeia, fica o convite para experimentarem, agora que a Páscoa se aproxima. Já o fiz e gostei. Bom proveito!



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Carta de emigrante a um amigo

Ambos residentes no Rio de Janeiro


Sr. Gonçalves, de Travancas, destinatário da missiva.



Descobri esta carta, datada de 1938, dentro de uma mala que veio do Brasil, no porão de um vapor, há setenta anos.  Pelo conteúdo e pelo carimbo 'Aberta pela censura' , é uma relíquia,  digna de ir parar a um museu!

Alguém, em Travancas, sabe hoje  que, na época, o Brasil era governado por um ditador? Chamava-se Getúlio Vargas. Tomou o poder  após um golpe de estado que impediu Júlio  Prestes, presidente democraticamente eleito, de tomar posse, e instituiu um 'Estado Novo' que durou de 1938 a 1945.


Confeitaria Colombo
Rio / 14 / 8 / 1938
Amigo Snr. Gonçalves

Saude é u cuanto lhe dezeijo na companhia
da sua Sinhôra e na companhia de sua Filha,
Pois eu fico de saúde graças a Deus, Snr. Gonçalves



Tenho-lhe a dizer que queria ir ahi a sua caza
Fazer-lhe uma Vizita no dia 11 de Setembro
que é no Dumingo, mas pedia-lhe o favor de vêr
Se nesse dia u meu amigo me a Ranjava a vir ahi
essas duas môssas que é uma de Travancas e a outra de
Argemil que é môssa que foi do Snr D de
Argemil e a outra a filha do A



o Snr falar com elas para elas elas vir ahi
Cumo lhe digo no dia 11 de Setembro que eu
dezijava estar cum elas ambas ahi em sua caza
que se elas ahi viessem nêsse dia eu então iria
mais Prevenido com uns dossinhos da Confeitaria
Colombo,


Veija se as pode ahi têr nesse dia que
eu tinha muito gosto de estar Com elas ahi em
Sua Caza num lhe pode dizer que é u
Jenro do Snr. P de Argemil que quer estar
Cum elas. Pesso-lhe esse favor, que eu sempre
ahi vou à mesma no dia 11 de
Setembro Se Deus Cuizer porque não
posso ir Primeiro,


A luxuosa Confeitaria Colombo, em cuja cozinha trabalhava o autor da carta, foi fundada em 1894 por emigrantes portugueses. Decorada com vitrais de Antuérpia, ao estilo da Belle Epoque, faz parte do património cultural e artístico do Rio de Janeiro e está incluida nos roteiros turísticos da Cidade Maravilhosa.


fica para o dia 11 como
lhe digo pode Contar Cumigo se Deus
quizer, mas não se esquessa de vêr se mas
pode trazer ahi êssas duas garotas como se
diz aqui no Rio, deicheme assim dizer.


Pesso u favôr de me esqurevêr cuando puder
e me diga se elas veem ou não que daqui
até lá u Snr. tem muito tempo de falar
com elas. Não se esquessa de me esqurevêr ou
pode até telefonar. Com isto pessu-lhe desculpa
pelo estar a incumudar. muitas Lembranças para
Sua Sinhôra egualmente para sua Filha e u Snr. de mim
asseite um apêrto de mão deste seu amigo Pinto


Minha direção
A T F Pinto
Rua 7 de Setembro nº 94
Confeitaria Colombo
Fone 22-7650


Se u snr quizer telefonar a dizerme se elas ahi vem, primeiro
u Snr pede para chamar u Snr Pinto da Cusinha, mas se elas
puder vir ahi, primeiro u Snr.
me da Resposta no dia em
que elas veem, espero sua resposta
Snr. Pinto

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Fumeiro à Nossa Moda

Saberes e sabores da terra


Numa altura em que decorrem, de janeiro a março, feiras do fumeiro em Boticas, Montalegre, Macedo de Cavaleiros, Chaves, Vinhais, Miranda do Douro e noutras terras transmontanas, convém lembrar que as iguarias gastronómicas lá compradas, por alguns de nós, são feitas em aldeias de nomes desconhecidos, por mulheres detentoras de um saber transmitido e aprimorado de geração em geração.






Travancas, terra de montanha, é uma dessas aldeias onde se produz fumeiro de excelente qualidade, para consumo doméstico ou para venda direta ao consumidor.




A dona São é o único caso de produção artesanal em que a venda também é feita na Feira do Fumeiro de Chaves, a realizar de 3 a 5 de fevereiro de 2012.





Graças ao Beto, pude ver a sua mãe, a tia Alzira, a prima Maria e a namorada, de Arçádegos, a fazer o fumeiro "como antigamente" - frisa a mãe, com um sorriso de satisfação e uma pontinha de vaidade, justificada.



E que rico fumeiro elas fizeram! Da primeira vez que as vi a trabalhar, poucos dias depois  da matança, faziam salpicões com a carne do lombo, sorsada - tempêro de vinho, alho e pimentão.



Antes, tinham feito as sangueiras, as bucheiras, as linguiças, os chouriços de calda e encheram os buchos.


Beto, autor da foto
Festa de São Sebastião em Cimo de Vila da Castanheira 

No dia de São Sebastião, 20 de janeiro, voltei para as ver fazer "Alheiras de Mirandela à moda de Travancas". Por isso vim cedo das festas de São Sebastião, em Couto de Dornelas e Alturas de Barroso, concelho de Boticas.



No dia anterior, o pão trigo, encomendado a uma padaria de São Pedro Velho, em Mirandela, especializada no fabrico de pão para alheiras,  com pouco fermento, tinha sido cortado em fatias e guardado em alguidares.


Nos potes, é cozida a carne de porco (couracha, cabeça...)  e o peito de frango caseiro cuja água  é despejada no alguidar sobre o pão, a que se junta a carne bem desfiada e uma pitada de sal.



Calda das alheiras já pronta, a que se acrescentou alho bem picado, refogado em bom azeite da Terra Quente e pimenta doce.



Enchendo as tripas com máquina apropriada, em substituição da antiga funila e do fuso.



Tripas de porco, já cheias, prontas a serem atadas e cortadas.


O mais bonito céu transmontano!
'Alheira à nossa moda', sem lobies para lhe ser atribuído o galardão de uma das Sete Maravilhas da Gastronomia Portuguesa mas um  regalo para os olhos e uma delícia para o paladar.


Anterior matança do porco em Travancas da Raia. Clicar em:

Matança do reco - A tradição ainda é o que  era